O Tribunal da Relação da Bahia e a Revolução dos Alfaiates (Revolta dos Búzios) – a execução das penas
Na noite de 07 de novembro de 1799, quinta-feira, condenados à morte, os soldados Luís Gonzaga e Lucas Dantas, além dos alfaiates João de Deus e Manoel Faustino, viveriam as suas últimas horas, no Oratório da Cadeia do Tribunal da Relação, localizada no subsolo da Câmara Municipal, onde já se encontravam, desde o dia 05, amparados por cerca de vinte religiosos, entre seculares e integrantes de várias Ordens.
A incredulidade se fazia presente. Onde erraram? Como teriam cometido o crime de lesa-majestade, se não havia sido disparado um tiro sequer? Por que só os negros e pobres iriam morrer? João de Deus nem sabia o que era uma revolução, quando convidado a participar do Movimento por Lucas Dantas.
Desesperado, Manoel Faustino tentou suicídio três vezes: ingerindo veneno; furando o peito com um prego, objetivando atingir o coração; e por asfixia, utilizando um pano no pescoço. O Frei José d´Monte Carmelo, do Convento de Santa Teresa, salvou-o nas tentativas.
Lucas Dantas, atormentado, introduziu uma colher de prata na garganta, sem êxito; mais uma vez, Frei José agiu rápido, avisado pelo próprio, e o socorreu.
Luís Gonzaga e João de Deus comportaram-se como loucos: choraram e debateram-se. Houve um exame de sanidade, realizado pelos Médicos Estêvão Silveira e Menezes, Francisco José Novais Campos, Diogo Ribeiro Sanches, Inácio Francisco da Câmara Bittencourt e Francisco Luís Reina (Cirurgião da Relação). Eles não detectaram anormalidades.
Lucas Dantas e Manoel Faustino se confessaram com Frei José. João de Deus não acatou o conselho de Manoel Faustino e continuou impenitente.
As autoridades providenciaram guarnecer a Praça do Palácio, com quarenta soldados, temendo qualquer reação.
No dia 08 de novembro, sexta-feira, os quatro insurretos deixaram a Cadeia do Tribunal, às 09:00 horas, em direção à Praça da Piedade.
Lucas Dantas e Manoel Faustino seguiram andando, com os religiosos ao redor. O segundo, no trajeto, pediu perdão aos amigos que avistou.
João de Deus e Luís Gonzaga, sem forças para caminhar, tiveram de ser carregados em cadeirinhas, com grilhões.
O cortejo macabro foi presenciado e acompanhado por grande parte da população. Militares cercaram a Praça da Piedade.
O Juiz da Execução, João da Costa Carneiro de Oliveira, que presidiu o enforcamento, estabeleceu a ordem sequencial: Luís Gonzaga, Lucas Dantas, Manoel Faustino e João de Deus. Contudo, o primeiro, quando já se encontrava com o capus e o carrasco lhe colocava a corda no pescoço, pediu para se confessar e o Magistrado permitiu. Enquanto o apenado falava com Frei José, na parte inferior do patíbulo, Manoel Faustino, que preferiu não presenciar a morte dos companheiros, pereceu. O segundo executado foi Lucas Dantas. Ato contínuo, João de Deus decidiu conversar com o religioso, após incentivo de Luís Gonzaga. Em seguida, este retornou ao patíbulo e asseverou, antes de morrer, que estava arrependido por haver se afastado da religião. Finalizando, João de Deus, que interrompeu a confissão para ouvir as últimas palavras do companheiro de ideal, ao caminhar para a morte, aconselhou os presentes a acreditarem no Catolicismo e na Lei de Deus, criticando as ideias dos autores estrangeiros.
Durante o ato, os soldados, que guarneciam a Praça da Piedade, postaram-se com as armas apontadas para os assistentes.
Os réus Ignácio da Silva Pimentel, José do Sacramento, Manoel de Santa Anna, José de Freitas Sá Couto, Romão Pinheiro, Luís de França Pires e José Félix da Costa, depois de açoitados, assistiram ao enforcamento.
O esquartejamento iniciou-se, imediatamente.
Tudo terminou às 15:00 horas.
A cabeça de Lucas Dantas foi espetada no Dique do Desterro, local da reunião preparatória da Revolta; a de Manoel Faustino, por este não dispor de residência fixa, seria colocada no Cruzeiro de São Francisco, em frente à casa de Lucas Dantas; já a de João de Deus permaneceu exposta na rua Direita do Palácio (atual Rua Chile), onde mantinha a sua alfaiataria.
No tocante a Luís Gonzaga, como autor dos escritos sediciosos, teve as mãos e a cabeça decepadas, para exibição no patíbulo, na Praça da Piedade.
As autoridades demoliram as moradias que pertenciam a Lucas Dantas e João de Deus, bem como colocaram sal nos terrenos, a fim de que não germinassem plantas, sendo os filhos e netos considerados infames.
Nesse ínterim, o escrivão criminal da Relação, João Luís de Abreu, faleceu, sendo substituído por Manoel Afonso dos Santos.
Havia pressa para concluir a execução das penas, razão pela qual agilizou-se o embarque dos degredados para a África e Fernando de Noronha.
A 12 de novembro, através do navio Nossa Senhora da Graça e Senhor do Bonfim, os rebeldes José de Freitas Sá Couto e Manoel de Santa Anna foram conduzidos para o território africano, tendo sido deixados, respectivamente, em 16 de janeiro de 1800, na localidade de Acurá (sob domínio holandês), e, dois dias depois, no porto de Aquitta (pertencente à Dinamarca).
Diante da situação constrangedora, em 13 de novembro, a Santa Casa de Misericórdia, após haver postulado ao Desembargador Francisco Sabino Álvares da Costa Pinto, recebeu a autorização para sepultar os restos mortais dos revoltosos.
Cosme Damião Pereira Bastos seguiu para o Rio de Janeiro, no dia 22 de novembro, na Fragata Pety, havendo ali aguardado, recolhido, a partida para Angola, só chegando a 07 de julho de 1800.
O conjurado José Raimundo Barata de Almeida foi levado, na nau Pipina, em 22 de novembro, para Recife, e, de lá, prosseguiu, na embarcação São José e Santo Antônio, a 08 de dezembro, em direção a Fernando de Noronha; Ignácio da Silva Pimentel, no dia 12 de dezembro, pela nau Xixaro, partiu rumo a Castelo da Mina (pertencente à Holanda), havendo desembarcado a 12 de março de 1800; e José do Sacramento, zarpou, em 13 de dezembro, por intermédio do navio Guia, e aportou na Franquia da Comenda (administrada pelos ingleses), no dia 04 de março de 1800.
Conforme registros contidos nos fólios do processo, o comandante da embarcação Jesus, Maria e José, que saiu de Salvador, a 13 de dezembro, deixou: José Félix da Costa, no dia 02 de fevereiro de 1800, na Fortaleza de Moura; Luís de França Pires, em 05 de fevereiro, na Fortaleza do Cabo Corso (possessão sueca); e Romão Pinheiro, a 07 de fevereiro, em Acará.
Os escravos Manoel José da Vera Cruz (este depois de açoitado com quinhentas chibatadas, no Pelourinho) e Ignácio Pires, ambos vendidos por determinação contida no acórdão do Tribunal, seguiram para Porto Alegre, na nau Plutão, em 23 de dezembro, tendo ali chegado, depois de algumas paradas, no dia 22 de abril de 1800.
O Professor Francisco Moniz Barreto de Aragão esteve preso um ano e os protegidos Tenentes Hermógenes Francisco de Aguillar Pantoja e José Gomes de Oliveira Borges, seis meses, ressaltando-se que não havia aproveitamento do período de prisão provisória anterior à condenação (detração).
Os Desembargadores Francisco Sabino Álvares da Costa Pinto e Manoel de Magalhães Pinto e Avelar de Barbedo, que presidiram as Devassas, encaminharam um relatório da execução das penas, no dia 19 de dezembro de 1799, para o Governador da Bahia, D. Fernando José de Portugal e Castro, e o Ministro Rodrigo de Souza Coutinho, da Coroa Portuguesa. Em 08 de março de 1800, este enviou uma carta de agradecimento ao Governador da Bahia, pela prestação jurisdicional rígida, elogiando as punições.
Alguns réus absolvidos ainda permaneceram encarcerados, por muitos meses, até que quitassem as despesas processuais.
Os últimos atos praticados no feito cingiram-se aos leilões dos bens confiscados, cujo dinheiro arrecadado serviu ao pagamento das custas; o derradeiro sucedeu em 22 de agosto de 1801.
Os autos originais do processo, inclusive os Avisos com resquício da cola usada quando da afixação nas fachadas de diversos imóveis em Salvador, encontram-se muito bem preservados no Arquivo Público do Estado da Bahia (algumas peças estão na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, por determinação de D. Pedro II, o que não compromete a consulta e o entendimento, pois há copias completas nas duas Instituições).
A narrativa minuciosa do suplício dos quatro acusados, a cargo do Frei José d´Monte Carmelo, pode ser pesquisada no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, no Rio de Janeiro.
Os bustos de Luís Gonzaga, Lucas Dantas, Manoel Faustino e João de Deus estão na Praça da Piedade, onde tremula a bandeira da República Bahiense, coincidentemente de cores azul, vermelha e branca, as mesmas dos pavilhões da França e da Bahia. Anualmente, no dia 12 de agosto, são prestadas homenagens aos mártires da Revolução, com a colocação de flores nos monumentos. Inúmeras ruas e escolas brasileiras os reverenciam.
A Presidente Dilma Rousseff sancionou a Lei nº 12.391, em 04 de março de 2011, inscrevendo os nomes dos quatro revolucionários no Livro dos Heróis do Panteão da Pátria e da Liberdade, localizado na Praça dos Três Poderes, em Brasília. A solenidade ocorreu no dia 04 de setembro de 2012.
O eco do primeiro Aviso, tornado público em 12 de agosto de 1798, ainda ressoa atual, conclamando o “povo bahiense” para o tempo feliz da liberdade, onde seremos irmãos e iguais.
Desembargador Lidivaldo Reaiche*
Fontes de pesquisa:
Burocracia e Sociedade Colonial: a Suprema Corte da Bahia e seus Juízes – Stuart Schwartz – Ed. Companhia Das Letras
Crônica do Viver Baiano Seiscentista – Obras Completas de Gregório de Matos – O Boca do Inferno – Ed. Janaína
História do Brasil – 1500-1627 – Frei Vicente do Salvador
Carta Ânua – Antônio Vieira
A Relação da Bahia – Affonso Ruy
História Geral do Brasil – Visconde de Porto Seguro
Memória da Justiça Brasileira, volume 1 – Tribunal de Justiça do Estado da Bahia
Memórias Históricas e Políticas da Província da Bahia – Anotações de Braz do Amaral – Inácio Accioli de Cerqueira Silva
Dicionário dos Desembargadores – 160-1834 – José Subtil
Tribunal de Justiça do Estado da Bahia – 410 anos fazendo história
Notícia Geral desta Capitania da Bahia – José Antônio Caldas
História da Sedição Intentada na Bahia em 1798 – Luis Henrique Dias Tavares
Da Sedição de 1798 à Revolta de 1824 na Bahia – Luís Henrique Dias Tavares
Autos das Devassas da Conspiração dos Alfaiates – Arquivo Público do Estado da Bahia
Instituto Búzios – A Conjuração Baiana de 1798 – Revolta dos Búzios – Liberdade, Fraternidade e Igualdade.
Escravidão – Vol. II – Laurentino Gomes
*O Desembargador Lidivaldo Reaiche Raimundo Britto retrata a História do Tribunal da Bahia, desde a época que funcionou como o Tribunal da Relação. Estudioso e pesquisador do tema, o Desembargador Lidivaldo é Presidente da Comissão Temporária de Igualdade, Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos Humanos (Cidis) e membro da Comissão Permanente de Memória.